ROUBEI A PERUCA DE JESUS

novembro 15, 2011

 

30/01

 

O negócio é tocar a bola e esperar o juiz apitar o fim do jogo. Definitivamente, não há sentido nenhum nesta partida. Tive um dia e uma noite intensos. Agora são cinco e meia da manhã e ao invés de estar dormindo como mandam as normas de segurança da longevidade estou aqui refletindo sobre o que vivi nas ultimas vinte e quatro horas. Sinto-me um operário padrão da inutilidade. 

 

6/02

 

Parece que o verão finalmente chegou. Parece. O que seria de mim se me dessem um ano de contas pagas? Hoje de manhã ruiu minha última ilusão financeira : a sra. Beatriz, incisiva, decidida, negou-me adiantamento por obra futurista. À tarde, antes da chuva luminosa e transversal, a visita de Lú, minha penúltima ilusão amorosa. Agora, noite, a poesia, ilusão definitiva. Preciso urgentemente reconhecer o meu lugar no mundo formiga.

 

 

 18/07

 

Semana passada ganhei um troféu. Curiosa sensação. Como sempre, fui à cerimônia de prêmiação para perder. E, no entanto, voltei para casa com a estatueta. Passado o delírio de subir ao palco e receber a arvorezinha de metal, fui tomado por um êxtase egóico sem precedentes. Afinal, era a sociedade coroando meu esforço de escriba. Nada mais importante do que escrever num escritório com o aval da sociedade. Estava ficando inseguro.

 

 

23/09

 

Voltei a usar a substância que produz sede saárica.

 

 

19/04

 

Tudo começou quando conheci Spyder, o poeta beat-metafísico português que tinha no seu currículo venda de psicotrópicos para entidades como David Bowie e Iggy Pop. Era como se eu estivese conhecendo alguém que já conhecia há milênios, o Spyder. Junto com ele, Severa, uma garota sensacional com uma história sensacional. Precoce, roubou a peruca de Jesus com apenas 16 anos de idade.   

 

 

29/12

 

O roubo da peruca de Jesus criou alento e inspiração para fundação de um fanzine que batizamos de Roubei a Peruca de Jesus. Severa seria a editora, Spyder cuidaria da editoria espírita usando o codinome Gasparzinho, Repepê, o proprietário da nascente mas promissora empresa Companhia das Águas ficaria à frente da editoria de esportes, e eu acabei ficando com o suplemento agrícola que achamos por bem ser verde e roxo e com uma coluna permanente de Nelson Ned.

 

 

02/07

 

 

O maior perigo reside na doença, no sofrimento que a doença produz. Para evitar a armadilha passei a evitar falas médicas e e me entreguei de cabeça a auto-sugestão. Quando a mente está alerta os vírus entram em pânico.

 

 

12/13/14/06

 

Foram três dias de intensas ilusões. A primeira chamava-se Cláudia e era alta, loira e bela, muito bela. Tê-la era uma questão meramente estética. A segunda foi Tereza que além da beleza tinha o atributo precioso da loucura. Tê-la era aventurar-me em paisagens inauditas. A terceira, Fernanda, beleza, loucura e poesia. Tê-la era ter-me. No quarto dia caí em mim.

 

 

23/04

 

 

Hoje parecia domingo. E era. Para mim, indiferente. As mesmas dúvidas de sempre. Porque preciso de alguém para amar e ser amado? Onde esta esfinge foi erguida e nublou a minha visão da felicidade? Em que ponto da nossa história genética este berro virou um barro totêmico? Hoje parecia domingo. Mas não era. Era mais um dia de dúvidas. Como todos.  

 

 

31/03

 

 

Súbita e atroz saudade de Fratelo.

 

 

02/01

 

Ninguém me procurou. Todos de férias. Da minha insensatez. Não vejo mais caminho de volta. Roubei a Peruca de Jesus pode vir a ser minha nova ilusão, meu libelo a favor das libélulas. Algo como pilotagem divertida num kartódromo psicodélico. Vou convidar Gracita para usar a peruca de Jesus por uma semana.

 

 

22/07

 

Acordei com o firme propósito de encontrar o tempo perdido. Saltei da cama em estado de rara animação e procurei-o nas gavetas e dentro dos livros. Inútil. Quando a manhã ensolarada já ia alta, arranquei o meu coração e interroguei-o a respeito de um certo tempo que havia perdido. Em vão. Disposto a chegar às últimas consequências liguei para o Homem do Tempo. Ocupado. Deseperado, acionei os astrofísicos da Nasa. Nada. Quando tudo parecia perdido o telefone tocou. Era ele.

 

 

17/11

 

 

Spyder me liga de madrugada com a péssima boa nova : Severa, a nossa editora do Peruca, está em poder da Farcs (Futurismo Aéreo Rebelde ao Cone Sul). Indago-lhe o que ou quanto estão pedindo para libertá-la. Pode parecer absurdo mas os caras querem, simplesmente, ficar com a peruca de Jesus para sempre. Pondero para Spyder que isto seria o fim da nossa última e mais preciosa ilusão. E peço para que ele negocie-me como refém dos terríveis pinguins da Patagônia Mentalis por tempo indeterminado em troca da liberdade da Peruca de Jesus.   

 

 

16/11

 

Intuindo que a situação da Peruca de Jesus poderia agravar-se, uso de todos os meus precários dons para alianças políticas e resolvo procurar por Aline Dorel, a famosa atriz e deusa viva do cinema de todos os tempos e direções, espécie de eminência inquestionável para questões ligadas à Peruca de Jesus. Depois de muitos contatos telefônicos, localizo Aline num set de filmagem em Cairo contracenando um filme com Charlton Heston com o nome provisório de “Os 10 Mandamentos”. Explico-lhe, aflito, a gravidade da situação. Com a voz um tanto lenta ela me pede um tempo para resolver a questão. Antes de desligar o telefone ela tenta me tranquilizar alegando que conhece como poucas a Peruca de Jesus.

 

 

05/09

 

Mais uma noite de contrasensos. Por mais que eu tente recuperar uma postura de seriedade e continuidade que nunca tive, sou sempre surpreendido pelo acaso e seu sorriso.

 

 

09/11

 

Intuindo a gravidade da situação mudamos para Piracicaba. Longe do tumulto metropolitano traçamos estratégias a fim de libertar Severa. Contudo, súbita e avassaladora paixão de Aline Dorel pela Peruca de Jesus inviabiliza nosso plano. Para piorar a situação, Spider apaixona-se por Aline. Repepe tenta remediar o caos internando-se numa fábrica de suco de cajú. Sólido como um gelo alio-me a um pinguim especialista em desatar nós.

 

 

14/08  

 

Silenciosamente chove sobre o tempo.

 

 

8/03

 

Teste de resistência e fidelidade aos ideais do Peruca de Jesus. Vigiados pelas autoridades locais e pressionados pelas quatro estações e seus efeitos devastadores, presenciamos o nascimento dos 32 filhos de Aline com Peruca de Jesus e a súbita e surpreendente falência da competente fábrica de suco de cajú que livrou Repepe do caos. Colômbia marxista nos envia Severa de volta pelo correio. Irreconhecível, quer transformar o Peruca numa fábrica de biscoito de milho. Percebendo sua ausência, enviamo-a de volta para Colômbia anexada a um livro de Clarice Lispector. Spider emotivo chora pela devolução.  

 

 


AS CARCAÇAS DE NEANDERTHAL

novembro 10, 2011

Toda vez que estou encalacrado num veículo em meio a um mega congestionamento lembro-me daquelas maravilhosas espaçonaves que levitavam felizes e coloridas nos céus do antológico desenho animado Os Jetsons. É flagrante que muitos daqueles atrevimentos futuristas que habitavam o cotidiano da família, como as extensas esteiras rolantes horizontais, serviram de inspiração para inventores, designers, arquitetos e engenheiros contemporâneos. Mas no tocante aos veículos, ficamos com a opção mais primitiva e ineficaz que são estes automotores rastejantes que se procriam pelas ruas das grandes cidades numa velocidade prá lá de geométrica.

 

Sabe-se que a velocidade média de um carro que trafega hoje nos centros urbanos é inferior à velocidade que andavam as caravanas dos bandeirantes com seus jumentos e botas de Borba Gato. E que só na cidade de São Paulo cerca de 40 mil pessoas morrem por ano por problemas decorrentes de doenças respiratórias provocadas pela enxurrada desumana de monóxido de carbono que estas carcaças de neanderthal despejam diáriamente na atmosfera. Mas por que, oh santos escapamentos & direções hidráulicas!, a indústria automobilística no Brasil continua batendo seguidos recordes de venda de seus anacrônicos, criminosos e nefastos produtos? 

 

Em todas as grandes cidades do primeiro mundo o automóvel tornou-se um “veículo non grato”. Uma repórter televisiva que mora em Nova York, disse numa entrevista que ter carro nesta cidade hoje em dia é considerado algo de extremo mau gosto. Usou mesmo o termo “jeca”. Um amigo meu fez um vôo entre Londres e Oslo, há poucos dias atrás. Contou-me que quando os passageiros chegaram no estacionamento do aeroporto da capital norueguesa, mais da metade foi embora de bicicleta. Sendo que ali havia, à disposição dos passageiros, ônibus, metrô, trem e taxi. 

 

 

Bem, diriam os realistas, quem comanda o jogo é o capitalismo, quem comanda o capitalismo é o mercado e quem comanda o mercado são os empresários, feitos de carne e osso, diga-se de passagem. E todos que fazem parte desta “ciranda” – incluindo sindicatos, trabalhadores, os novos consumidores, governo e, sobretudo, os publicitários – parecem muito felizes com o andar desta carruagem putrefata. Cada qual com o seu interesse. Interesses, que, aliás, estão interligadas.

 

A impressão que tenho é que 50% das propagandas exibidas na TV são de automóveis. É algo absolutamente desproporcional. Um desavisado estrangeiro que chegar aqui e assistir meia hora da nossa programação vai achar que o brasileiro é um louco aficcionado por automóveis e que só pensa nisto 24 horas por dia. Há de se notar que nestes filmes, os veículos são humanizados, glamorizados, mitificados, tudo no limite da histérica idiotia. Eles sempre andam em alta velocidade em estradas e cidades vazias e o mundo sempre está aos pés de quem os dirige. Em suma, gera uma sensação de que se você não tem um não é ninguém. E é possível detectar esta cruel falácia quando andamos pelas ruas no papel de pedestre. A grande maioria dos motoristas vê o transeunte como alguém que não é ninguém. Atropelamento é algo corriqueiro. É a própria expressão da barbárie.  

 

Soma-se a esta crueldade perpetrada pelo mundo publicitário, feita de ilusão e de mentira, o evidente descaso dos governos com transportes públicos. É absolutamente patético que um passageiro desembarque no Aeroporto de Cumbica, na segunda maior cidade da América Latina, e tenha só duas opções de deslocar-se, de taxi ou de ônibus ( que saem de uma em uma hora e custam o olho da cara). E que depois siga por uma via como a Marginal Tietê ladeada por um rio cadavérico e tendo como companhia milhares de carros que andam a menos de cinco quilômetros por hora, quando andam. No rio, nenhum sinal de vida. Nenhuma barcarola.  Nada. Só desolação e descaso. 

 


ERA UMA VEZ UMA BULGÁRIA

novembro 1, 2011

Lembro-me com uma distorcida nitidez da noite em que ouvi pela primeira vez o nome de Campos de Carvalho. Estava jogando bilhar num daqueles botecos ladrilhados da Cardeal Arco Verde quando um acaso favorável fez com o que o poeta Sérgio Cohn, então editor da sensacional revista de poesias Azougue, adentrasse o ambiente. Disse distorcida nitidez : lembro-me que chovia e que ainda estávamos no conturbado século XX. E que as esferas coloridas ricocheteavam provocando um ruído estridente, agudo. Acho que os ladrilhos eram brancos. E que o Sérgio estava de óculos. Pouco importa.

Sentamo-nos numa mesa e ele me contou que tinha acabado de entrevistar o Campos de Carvalho. “ Quem?” “O maior escritor brasileiro de todos os tempos!” “Como? Nunca ouvi falar deste cara…” Me parecia impossível eu não conhecê-lo, principalmente porque Sérgio repetiu algumas vezes durante o intenso diálogo que  “o texto de Campos tem tudo a ver com você…”. Comecei a achar que era ficção. É normal em conversas entre poetas e escritores estes legítimos delírios onde inventamos alguém que nunca existiu para ver até que ponto conseguimos convencer o nosso interlocutor.  Já estava com a cereteza de que era alvo de uma destas brincadeiras quando pedi-lhe para que dissesse alguma frase do escritor. “ Aos dezesseis anos de idade matei meu professor de lógica alegando legítima defesa.” Houve um silêncio. Aquele silêncio que se segue após uma porrada, um forte estrondo, uma tempestade. “É a primeira frase de “A Lua Vem Da Ásia”, uma de suas quatro novelas” disse Sérgio emoldurando meu encantamento.

Depois daquela noite posso afirmar que eu nunca mais fui o mesmo. Um ano depois a editora José Olympio lançaria um livro com as tais quatro novelas ( A Lua Vem Da Ásia, Vaca De Nariz Sutil, Chuva Imóvel e o Púlcaro Búlgaro) e eu me tornaria um discípulo e divulgador emérito da obra de Campos de Carvalho. Me deixei influenciar pelas suas idéias, sua maneira livre e louca de escrever, seu surrealismo intransigente e iconoclasata, seu senso de humor sarcástico e dilacerante. Passei alguns anos devorando aquelas iguarias non-sense-insanas e procurando digeri-las no calor dos textos que escrevia.

Nesta época trabalhava como repórter de uma famosa revista de turismo. Tinha um bom trânsito com os editores e redatores e minhas pautas, embora atípicas e excêntricas, eram aceitas com facilidade e simpatia pela direção da revista. E foi munido deste cacife que entrei numa reunião de pauta e disse-lhes o seguinte : “ Alguém precisa ir à Bulgária e comprovar a existência deste país. Até onde sei, ele não existe.”  Houve uma nervosa gargalhada e a seguir o editor, com uma expressão “este cara vai aprontar, mas vamos ver onde isto vai dar” aprovou a viagem. A pauta, na verdade, vinha de o Púlcaro Búlgaro, uma das quatro novelas de Campos de Carvalho. Na vertiginosa narrativa de aproximadamente cem páginas, o personagem organiza uma hilária e absurda expedição à Bulgária a fim de certificar-se da existência daquele país.

Dias depois estava no avião em solitária expedição rumo à Sófia, a capital do controvertido país. Munido de uma câmera digital e embriagado do espírito surrealista de Campos de Carvalho entrei na fila que me levaria ao Bigode do guarda de fronteira búlgaro e a seguir à possível constatação da existência do tal país. Enquanto esperava minha vez, observava um tapume de madeira que dividia a rua do Aeroporto. A parte inferior deste tapume era vazada o que tronava possível ver sapatos de “cidadãos búlgaros” transitando pela suposta calçada. “Onde há búlgaros há Bulgária”, pensei.

Mas os secretos desígnios que conduzem nossos passos me guardava uma surpresa. Ao abrir meu passaporte o policial olhou-me com assombro e, num inglês típico da região, informou-me que a data do meu visto de entrada estava prevista para dali há quatro dias. E que eu não poderia entrar naquele momento, mas se quisesse poderia esperar na sala de embarque durante os quatro dias ou retornar a Milão, de onde tinha vindo. Olhei para a desolada e gelada Sala com seus sofás e bancos de couro imundos. A tempertaura local era de menos dez graus. Nevava.

Disse-lhe que era repórter de uma revista brasileira de turismo e que estava ali a trabalho. Ele então conduziu-me até uma sala, onde fiquei esperando um funcionário que trataria da minha situação. Neste ínterim de quinze minutos lembrei-me de que a maioria da polícia secreta da ex-União Soviética, a terrível KGB, era composta de búlgaros. Tremi. Então chegou o tal Nariz, o funcionário, acompanhado de mais três mulheres, todas Narizes. “Para quais lugares da Búlgária que você pretendia ir?” perguntou-me já me informando no verbo “pretendia” que eu não entraria no seu país.  

Neste momento eu já tinha entendido que a minha matéria estava em pleno curso, a pauta funcionava, policiais de fronteira búlgaros queriam ocultar de mim a não existência da Bulgária. Respondi-lhe que meu objetivo era “andar sempre frente sob a neve até atingir o Mar Negro.” Ele se sentiu ofendido e retorquiu nervoso “ mas porque você  foi mandado pela sua revista justamente para a Bulgária?” . E esta era a perguntava que eu mais esperava. “ Porque no Brasil há uma desconfiança quanto à existência da Bulgária.” . Imediatamente ele apontou a porta de saída e, acompanhado de dois Narizes masculinos e um feminino, fui jogado no ônibus que me levaria até o avião.

De volta à Milão, bolei um plano para atingir o misterioso país de trem. Dei-lhe o jocoso nome de “Pegando Os Búlgaros De Calça Curta”. Mas fui capturado na fronteira da República Tcheca e deportado para a Áustria, país que não via nenhum mal no fato de um repórter brasileiro desconfiar da existência de um outro país. Em Viena tomei oito cafés com o embaixador brasileiro daquele país enquanto ele não resolvia absolutamente nada e me tratava como seu eu fosse búlgaro e conheci uma garota de programa. Relatei-lhe minha brava saga que já durava três dias. Ela fingiu uma comoção. E abriu suas alvíssimas pernas.

O resto, bem, o resto é segredo